Ao fim de umas horas e de uns dias de atraso, é possível ouvir na 1ª pessoa, as impressões de Pele Delgadinho. Como este nosso comentador não tem passe social, nem fax, nem internet, só hoje é que Pelé Delgadinho chegou aos nosso estúdios com as suas impressões da noite das eleições, escrita no seu bloco Castelo, a caneta BIC. Em seguida, a crónica na íntegra deste nosso comentador:
"Devo dizer que isto era bem mais engraçado nos dias dos jogos do Euro.
O meu primeiro contacto com a multidão que festejava nas ruas, foi no Largo do Rato. Já lá estava tudo: a roulote dos couratos, o vendedor das queijadas e vendedores de bandeiras. A JS preparava uma entrada triunfal, e a aparece num carrinha volkswagen verde. Vejo José Sócrates a passar no seu carro, com a mão de fora, pensei por momentos, que se iria iniciar um beija-mão, mas não, devia estar a refrescar-se. As motos da TSF, da SIC e da LUSA a seguirem-no.
Sócrates entra na sede do partido e a multidão grita. Sócrates vai para a varanda, a multidão vibra. Palmas e palavras como “PS”, “Vitória” e “Portugal” são abundantemente repetidas, e as bandeiras esvoaçam e o hino do “Gladiador” entoa pela 10000000000000000000000000000 vez.
Assim que Sócrates termina de falar, a multidão começa a dispersar e a ir para casa. Uma espécie de missa no Vaticano com o Papa, ou uma Evita Peron à varanda, ou então, igual aos concertos do Silence Four (nos tempos áureos) que mal cantavam o “Borrow” o pessoal ia-se embora, ou ainda mais recentemente, como no concerto do Arnaldo Antunes, no Sudoeste 2003, que estava às moscas, mas assim que ele toca a “Velha infância” dos Tribalistas, de repente toda a gente curte bué, dança bué e mal acaba, a malta já nem se lembra quem é aquele senhor.
Mas devo dizer que a juventude socialista está bem amestrada. Quando Sócrates deixa a varanda, a juventude continua a bater palmas e do nome do líder passa-se a outro grito de guerra: “Jamila, Jamila, Jamila!”. E uma figura alta e magra acena aos seus antigos companheiros de juventude, com uma lágrima, no canto do olho.
Para finalizar, um dinossauro socialista ainda dá o ar de sua graça, pondo uma pequena panela no chão, bem ao pé de uma árvore, e surgem pequenos foguetes no ar, levando a multidão ao rubro.
Ao pé da Papelaria Fernandes, vejo cinco jovens de cara tristonha e pachorrenta, vestidos de cor de laranja, da cabeça aos pés.
Passados uns minutos passam uns carros a buzinar, com bandeiras do Bloco e lá vai a Juventude Socialista a correr, trocam bandeiras, gritam muito e oh, quanta felicidade.
No meio disto, tento ouvir as conversas destes fervorosos apoiantes, e não consigo compreender porque duas militantes, vestidas de PS, da cabeça aos pés e com bandeiras maiores que elas, gritam histéricas: “Viva o Diogo Infante! Viva o Diogo Infante”.
Acho que é demais, e vou-me embora. Quero é ir cumprimentar o meu amigo Chico, perdão, o meu conhecido Francisco Louçã.
Arrasto-me até ao Bairro Alto e surpresas, das surpresas está deserto. Encontro alguns camaradas comunistas a beberem brandy-mel, pagam-me um, eu aceito, pois claro, a noite ainda era uma criança, e continuo em busca do Chico, perdão, o meu vagamente conhecido Francisco Louçã.
Começo a perceber que a festa do Bloco ficou mesmo pela Graça, na Voz do Operário, e rogo pragas à Direcção desta Rádio que não me deu subsídio de transportes, e lá vou eu ter que gastar os meus últimos tostões na “Rede da Madrugada”. Ainda por cima, vou descer até ao Cais do Sodré, apanhar o 200 e qualquer coisa que vai para Sapadores, porque senão, já são dois BUCS, pá, e a malta ainda quer beber uma preta com o Chico, perdão, com aquele senhor que eu conheço do Bloco de Esquerda.
E sei que apanhei um autocarro qualquer e estive a beber uns panachés com uns italianos e uns gregos - alguém fazia anos – já não me consigo lembrar claramente do que falávamos, mas fiquei com a sensação que aqueles jovens também comemoravam os novos passos da democracia e estavam com os olhos postos no futuro. Fiquei emocionado e mais ainda, quando chego a casa e vejo o meu irmão (com quem já não falava, desde que entrei no 7º ano), sentado no vão de escadas, com uma garrafa de Trinarajus sem borbulhas, triste e cabisbaixo, e disse-me: “Maninho, acho que vou ficar sem emprego. Achas que posso escrever na tua fanzine?”. Pá, eu até curti a atitude dele, men, mas eu já sei como ele é, vai querer mandar em tudo, e os meus amigos não vão curtir. Disse-lhe que logo se via, mas que por agora, era melhor abancar aí no sofá. Ele até aceitou, mas acho que só veio para minha casa, porque eu tenho a televisão estragada e assim, ele não pode ver os seus amigos – no domingo, todos os amigos dele apareciam na televisão, e estavam todos a chorar – e assim ele acalmou uma beca e dormiu uma bela soneca. No dia seguinte, partiu para nunca mais voltar a minha casa. Só devo voltar a vê-lo nas próximas eleições, quando o Chico, perdão, aquele senhor que eu sei quem é, for presidente.
Eu curti bué a noite de domingo, mas sinceramente, as noites dos jogos do Euro foram bem mais animadas. O pessoal já não se sabe divertir e há pouca malta a vender cerveja na rua. Que isto não se volte a repetir. E que com este novo Governo, as coisas melhorem bué nestes aspectos culturais".
* Post originalmente publicado na Rádio Pirata