Dizia, eram sinais. Deu-se corda às perninhas e alla que se faz tarde. Perde-se o 58 mesmo à frente do nariz, aguarda-se pelo próximo. E lá vem ele, com pouca vontade de se encostar à paragem, os passageiros que andem até ele, e passageira de trinta anos resolve dar um ar de passageira de setenta anos, e espalha-se ao comprido, torcendo o seu pézinho esquerdo numa elasticidade desconhecida, acho mesmo que fez a rotação pela Terra, por Marte ou Saturno, esfolando o joelho e solta-se um valente "Au!" e um pequeno desabafo sentido e expressivo que não vou reproduzir, levanta-se não se sabe bem como, a coxear, entra-se sem muitas falas com ninguém, e sento-me no lugar dos reservados, dos velhinhos e dos acabados, num misto de dor e de vexame público, tão igual aquele que se sentia quando se era miúda, mas que se podia chorar à vontade, que com um beijinho da mãe e uma sombrinha de chocolate, a coisa passava. Consigo dar alegria ao estimado público do 58, que vai até ao Chiado empenhado em debater que poderia ter sido bem pior, ou que a vida pode-se ir num minuto, e um colectivo de olhares macabros e curiosos contemplavam o meu joelho esfolado e sangrento, à espera de uma qualquer reacção, que alguma coisa saísse de mim, para que pudessem continuar a traçar o diagnóstico. Para melhorar consideravelmente o quadro urbano desta coisa de ususfruir dos transportes colectivos, a principal mobilizadora da opinião pública do 58, sai na mesma paragem que eu, despede-se de mim com um "e coitadinha, está grávida e tudo!", e com "Deus que a ajude!", e eu demasiada concentrada na minha dor e na minha coxice, nem fui capaz de agradecer com alguma blasfémia. Caramba. E o joelho esfolado, a sangrar. Onde raio se trata de um joelho quando se anda por Lisboa? Farmácia? Pois, está bem, "mas tem que comprar um saco de água oxigenada e um pacote de algodão e isso do pé... bem, nós não somos médicos". Muito bem. Mais vale entrar no primeiro café que encontrar, fazer o meu ar mais desgraçado possível e pedir se têm alguma coisa com que possa desinfectar. E tinham. Mas o pé, coitadinho do pé, continuava a doer. E como raio conseguiria subir até ao Castelo? A Preciosa que me desculpe, mas eu cá acho que vou até às Urgências.
E lá gastei o que tinha num táxi que me levasse até ao hospital da minha residência. Ai, como é tão bom atravessar a cidade às cinco da tarde. O trânsito já está nervosinho e os condutores simpáticos e bem-dispostos. Chega-se ao tal hospital, está em obras, para não destoar do contexto nacional. Não há macas, não há cadeiras de rodas, não há salas de recobro, portanto, junta-se tudo num só espaço. Ainda não sabia. Primeiro vou pagar a taxa moderadora, e depois dizem-me "Ah, a Inês tem aqui uma conta antiga de 2002, quando puder pagar, esteja à vontade". Com certeza, tomem lá 1€ pelo oxigénio. Já agora você também paga pelo oxigénio que usa todos os dias? Ah, ah, a Inês é engraçada. Aguarde só um bocadinho, que já a chamam. E lá se espera pela triagem. E pela triagem da triagem, onde se encontra um médico revoltado com o sistema que me diz que o raio-x tem estado avariado, por isso vai demorar, "como sempre". Volta-se para a sala de espera, a tal onde se partilha tudo, uma espécie de colectividade improvisada, com as macas, os doentes, os acompanhantes. Todos sabemos o que cada um tem. Para compor o cenário Wisemaninano entram alguns guardas prisionais com tipos algemados, "deve ter havido rixa na prisa", diz a líder da sala de espera. Um dos prisioneiros, que por acaso até ia de maca, senta-se, olhando para o público e diz que está muito feliz por estar ali, de ver outras caras, e ri-se, ri-se, ri-se e desaparece para um dos gabinetes da triagem. Desconfio que foi atendido pelo médico revoltado, pois não voltei a ver nenhum dos dois.
Ao fim de algum tempo, lá fui atendida. "Não partiu, só torceu", ainda assim mandam repouso e pé no ar durante uns dias, gelo e anti-inflamatório, e tarã, canadianas. "Canadianas? Não! Isso é que não!". Ai não mesmo. Prefiro o pé coxinho.
And God, thank you again for another lovely monday!
1 comentário:
Amiga, cada vez me convenço mais que os trinta só nos trazem destas coisas. Estou muito solidária contigo. Estou eu, as borbulhas e as constantes comichões da minha mais recente alergia sabe deus a quê, que me tornou num camarão da cabeça aos pés!!! Nós sofremos!!!
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